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Dois dias depois do réveillon de 2023, o corpo de Francisco Ieude do Nascimento chegou ao prédio do Instituto de Medicina Legal do Distrito Federal. Vítima de um traumatismo cranioencefálico, o cadáver ficou resguardado a 2ºC nas gavetas da câmara fria esperando que algum familiar o solicitasse. Passaram-se 11 dias e nenhum conhecido reclamou por ele.
O homem foi enterrado sozinho no cemitério do Gama. Assim como Francisco, a ampla maioria dos corpos “abandonados” nos necrotérios é de pessoas negras ou pardas.
Desconsiderando as pessoas que não tiveram dados pessoais identificados, a reportagem apurou que 206 cadáveres foram deixados nos necrotérios do DF nos últimos cinco anos. Do total, 174 são de pessoas pretas, o que representa mais de 84%.
A causa da morte varia entre politraumatismo (32); violenta (15); traumatismo craneoencefálico (26). Há ainda 46 mortes com causa indeterminada.
Os dados foram obtidos pelo Metrópoles por meio de pedidos de Lei de Acesso à Informação ao IML e ao Serviço de Verificação de Óbitos (SVO).
O número pode ser ainda maior se contabilizar também corpos que são de responsabilidade de outros órgãos de saúde pública e de hospitais particulares.
SVO
Vinculado à Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal (SES-DF), o SVO é responsável por recolher e periciar corpos de pessoas que morreram de aparentes causas naturais e atua desde 2019.
Por ano, o serviço enterra, em média, 15 pessoas sem que conhecidos delas se apresentem para iniciar os trâmites legais do enterro.
O trabalho conta com a participação de equipes do Instituto de Identificação da Polícia Civil do Distrito Federal (II-PCDF). Quando não é possível levantar informações sobre a vítima, os registros são repassados às instituições de outras unidades da Federação, como tentativa de cruzamento de dados.
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Racismo estrutural e necropolítica
Para explicar a situação dos corpos de pessoas pretas, André Luiz Freitas Dias faz referência ao livro Genocídio do Negro, de Abdias do Nascimento: “Após a abolição da escravidão, a população negra no Brasil simplesmente foi despejada nas ruas da cidade sem políticas públicas estruturantes alguma. Então, sem moradia, sem trabalho e renda, sem educação. Além disso, essa população vivenciou e continua vivenciando históricos processos de práticas de violências e violações de direitos sobre seus corpos, territórios”.
Professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e coordenador do Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a População em Situação de Rua (POLOS), o especialista indica que as pessoas negras estão sujeitas a um cruel processo de silenciamento de suas histórias.
O professor ressalta dois momentos históricos que ajudam a entender o racismo estrutural e a necropolítica. A primeira foi em 1890, quando o ministro Rui Barbosa determinou a queima de documentos relacionados à escravidão. “Isso, eu acho que é algo importante porque nós vivenciamos no Brasil um apagamento de dados com relação à população negra brasileira e as violências e violações de direitos praticadas com seus corpos há muito tempo”, afirma André.
Também em 1890, aponta o coordenador, tivemos o primeiro código de processo penal da República, que criminalizava uma séries de ações contra os negros. O documento continuou em vigência por várias décadas, sendo o Brasil um dos últimos países a parar de criminalizar apenas atitudes feitas por pessoas pretas.
“Muitos desses corpos que são encontrados no IML, por exemplo, sequer apresentam alguns marcadores que seriam importantíssimos para compreensão desses fenômenos. Por exemplo, nós não temos nesses marcadores, nesses órgãos, no IML, um marcador a respeito da população em situação de rua. Então, muitas pessoas são enterradas como indigentes, muitas pessoas sequer são encontradas sem que, por exemplo, saibamos dessa história da pessoa”, destaca.
Nos dados analisados pelo Metrópoles sobre os corpos que chegam aos necrotérios do DF, havia 121 pessoas sem dados de etnia e outros 46 sem causa da morte apontada.
De acordo com André Luiz, nenhum desses processos de apagamento de existências da população negra ocorreria se não houvesse uma estrutura de opressão, que existe por uma estrutura que lucra com o racismo estrutural. “Por trás dessa política de morte, existe sem sombra de dúvidas uma “necro-economia”, uma obtenção de lucros e manutenção e permanência de privilégios, de uma branquitude que ainda hoje não enfrentou devidamente o racismo estrutural no nosso país”, relata.
Para concluir, o professor ressalta: “Há tempos vivemos no nosso país um projeto mesmo de eliminação de corpos negros. Esse projeto, ainda hoje, muito pouco tem sido enfrentado. Obviamente, no governo anterior de Jair Bolsonaro, esse projeto foi aprofundado, mas mesmo em governos anteriores ele não foi,na sua completude devidamente enfrentado. Ainda hoje, não enfrentamos de maneira integral o racismo estrutural e séculos de escravidão que tantas marcas deixaram e continuam deixando na população negra no nosso país.”
Legislação e burocracia
De acordo com a Lei de Registros Públicos, decorridos 15 dias do falecimento, o corpo poderá ser sepultado pelo serviço social do Governo do Distrito Federal (GDF). A legislação indica que o prazo é contabilizado a partir da morte. A data não é, necessariamente, a mesma em que o cadáver chega ao necrotério.
Além disso, uma portaria do próprio SVO estabelece que o prazo depende do estado de composição e do tempo definido pela Justiça. Todos esses corpos devem passar por processo de identificação e têm registrados os locais exatos do sepultamento no cemitério, para eventuais reconhecimentos futuros.
SVO no HRC9
SVO no HRC8
SVO no HRC2 (1)
SVO no HRC3 (1)
SVO no HRC6 (1)
SVO no HRC5
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Outro ponto é que Lei N° 8.501, de 30 de novembro de 1992, aponta que o cadáver não reclamado junto às autoridades públicas, no prazo de 30 dias, poderá ser destinado às escolas de medicina, para fins de ensino e de pesquisa de caráter científico.
Para isso, os corpos destinados não teriam qualquer documentação ou informações para localizar seus parentes.
Em junho, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) condenou o DF ao pagamento de indenização de R$ 20 mil, por danos morais, a uma mãe que foi impossibilitada de localizar de restos mortais de um bebê.
Em 1982, a mãe tinha 13 anos e deu luz a um menino considerado natimorto no Hospital Regional de Ceilândia (HRC). Ao solicitar o corpo para realizar sepultamento, a família foi informada de que a mulher havia consentido com a entrega do corpo para estudos. No entanto, ela não havia autorizado e nem sequer tinha idade para a prática do ato.
Onze dias após o fato, o HRC entregou à família o corpo do bebê para sepultamento. Contudo, o cadáver não se parecia com o seu filho. Com a dúvida e sofrendo com problemas emocionais severos, a mulher propôs, em 2013, a ação de exumação dos restos mortais do bebê sepultado para exame de DNA.
O procedimento foi realizado em local diverso daquele que ela rotineiramente visitava há mais de 30 anos. Sobre esse fato, o Instituto Nacional de Pesquisa de DNA informou que a exumação foi realizada no local indicado na decisão judicial. A concessionária responsável pela administração do cemitério, por sua vez, afirmou que “a identificação física de grande parte dos túmulos era praticamente impossível de ser feita”.
Na decisão, o tribunal entendeu que foi tirado da autora a única chance de sanar a dúvida sobre o vínculo biológico existente entre ela e o natimorto sepultado. Foi mostrado que houve falha na administração dos jazigos do cemitério, caracterizado pela ausência de identificação dos túmulos, e que a incerteza em relação ao local dos restos mortais do bebê atenta contra a esfera moral da autora.
“O simples fato de a apelante não saber, com exatidão, onde estão os restos mortais do bebê natimorto cujo corpo lhe fora entregue como sendo o do seu filho já seria, por si só, motivo suficiente a caracterizar evidente violação a direito da personalidade, passível, portanto, de compensação por danos morais”, concluiu a desembargadora.
Erros de identificação
Outro caso emblemático na história da capital federal foi julgado há nove anos. Honorina Maria dos Santos foi indenizada porque seu filho foi enterrado como indigente, apesar de o homem estar com os documentos no bolso da calça quando foi encontrado.
A decisão indicou que “o procedimento dos agentes públicos, na espécie, demonstram que o tratamento dispensado pelo DF a todos os corpos encontrados pelas ruas, identificados ou não, é semelhante, evidenciando grave falha em sua atuação que demanda correção imediata”.
A mãe relatou que o falecimento do filho aconteceu em março de 2010 e seu corpo foi encontrado três dias depois. Sem conseguir se despedir com dignidade, a mulher procurou as autoridades.
No mês seguinte, a identificação necropapiloscópica confirmou que o cadáver era a pessoa identificada nos documentos encontrados com o corpo.
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